terça-feira, 19 de julho de 2011

Uma lição de amor - parte I

Quem não tem um livro de cabeceira?!
Tenho alguns. Às vezes, me debato na escolha do felizardo que vai dormir comigo rs
Hoje estou com o 'As horas`do Michael Cunningham.
E tem uma passagem que acho bem legal.
Ei-la:

'Laura começa a peneirar a farinha na vasilha azul. Do lado de fora da janela, existe um breve interlúdio de grama, separando as duas casas vizinhas; a sombra de um passarinho cruza o estuque branquíssimo da garagem ao lado. Por alguns instantes, ela sente uma satisfação profunda com a sobra da ave, as faixas brilhantes de branco e verde. A tigela sobre o balcão onde trabalha é de um azul pálido, meio apagado, com uma tira estreita de folhas brancas na borda. As folhas são idênticas, estilizadas, como se saídas de um desenho animado, tombadas em ângulos inclinados, e parece perfeito e inevitável que uma delas tenha sofrido um pequeno e exato talho triangular do lado. Uma chuva de farinha, fina e branca, cai na tigela.

'Pronto', ela diz a Richie. 'Quer ver?'
'Quero.'
Ela ajoelha para lhe mostrar a farinha peneirada. 'Agora nós vamos ter que medir quatro xícaras. Minha nossa. Você sabe quanto é quatro?'
Ele ergue quatro dedos. 'Ótimo. Muito bem.'

Neste momento, poderia devorá-lo, mas sem avidez, com adoração, infinitamente gentil, como costumava tomar a hóstia na boca, antes de se casar e se converter (a mãe nunca irá perdoá-la, nunca). Ela está cheia de um amor tão forte, tão sem ambiguidade, que parece apetite.

'Você é um menino tão bom, tão inteligente.'

Richie sorri; olha ardorosamente para o rosto dela. Ela retribui. Eles param, imóveis, observando-se, e por alguns instantes ela é exatamente o que parece ser: uma mulher grávida, ajoelhada na cozinha com o filho de três anos de idade, que sabe contar até quatro. Ela é ela mesma e a imagem perfeita de si; não há diferença. Vai fazer um bolo de aniversário - apenas um bolo -, mas em sua cabeça, nesse instante, o bolo é tão sofisticado e esplendoroso quanto qualquer fotografia em qualquer revista; é ainda melhor do que as fotografias de bolo nas revistas. Ela se imagina fazendo, com os materias os mais humildes, um bolo com todo o equilíbrio e autoridade de uma urna ou uma casa. O bolo falará de benesses e delícias da mesma forma que uma boa casa fala de segurança e conforto. Isto, ela pensa, é o que os artistas ou arquitetos devem sentir (é uma comparação horrivelmente grandiosa, ela sabe, talvez até um pouco tola, mas e daí?) diante da tela, da pedra, do óleo ou do cimento fresco. Pois então um livro como Mrs. Dalloway já não foi um dia apenas papel em branco e um tinteiro? É apenas um bolo, diz consigo mesma. Mas e daí? Existem bolos e bolos. Nesse momento, segurando uma tigela cheia de farinha peneirada numa casa bem-arrumada, sob o céu da Califórnia, espera sentir-se tão satisfeita e tão repleta de expectativas quanto um escritor pondo sua primeira frase no papel, um arquiteto começando a desenhar seus planos.

'Bacana', ela diz a Richie. 'Você põe a primeira.'

Ela lhe entrega um medidor de metal brilhante. É a primeira vez que lhe confiam uma tarefa como essa. Depois coloca no chão uma segunda tigela, vazia, para ele. Ele segura o medidor com as duas mãos.


'Lá vamos nós', ela diz.'

(...)


domingo, 17 de julho de 2011

Senhas (!)

Olás,

Venho pensando na idéia de fazer um blog há um tempo ... mas agora decidi 'bater o martelo' e criá-lo!
Não sei o que este espaço se tornará ... que rumos tomará ... as rédeas estarão em nossas mãos!
Bom, prá entrar neste espaço é necessário uma senha. E aí encontrei a 'Senhas` da Adriana Calcanhotto, que sintetiza muito bem o que pretendo começar a tecer com vocês!
Portanto, retire sua senha e se junte a mim. Será um prazer tê-los por aqui!

Avante!

Railton Carvalho

Senhas

Eu não gosto do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus tratos

Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu aguento até os caretas
E suas verdades perfeitas

O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até os estetas
Eu não julgo competência
Eu não ligo pra etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
E compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades

O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Não, não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem