Quem não tem um livro de cabeceira?!
Tenho alguns. Às vezes, me debato na escolha do felizardo que vai dormir comigo rs
Hoje estou com o 'As horas`do Michael Cunningham.
E tem uma passagem que acho bem legal.
Ei-la:
'Laura começa a peneirar a farinha na vasilha azul. Do lado de fora da janela, existe um breve interlúdio de grama, separando as duas casas vizinhas; a sombra de um passarinho cruza o estuque branquíssimo da garagem ao lado. Por alguns instantes, ela sente uma satisfação profunda com a sobra da ave, as faixas brilhantes de branco e verde. A tigela sobre o balcão onde trabalha é de um azul pálido, meio apagado, com uma tira estreita de folhas brancas na borda. As folhas são idênticas, estilizadas, como se saídas de um desenho animado, tombadas em ângulos inclinados, e parece perfeito e inevitável que uma delas tenha sofrido um pequeno e exato talho triangular do lado. Uma chuva de farinha, fina e branca, cai na tigela.
'Pronto', ela diz a Richie. 'Quer ver?'
'Quero.'
Ela ajoelha para lhe mostrar a farinha peneirada. 'Agora nós vamos ter que medir quatro xícaras. Minha nossa. Você sabe quanto é quatro?'
Ele ergue quatro dedos. 'Ótimo. Muito bem.'
Neste momento, poderia devorá-lo, mas sem avidez, com adoração, infinitamente gentil, como costumava tomar a hóstia na boca, antes de se casar e se converter (a mãe nunca irá perdoá-la, nunca). Ela está cheia de um amor tão forte, tão sem ambiguidade, que parece apetite.
'Você é um menino tão bom, tão inteligente.'
Richie sorri; olha ardorosamente para o rosto dela. Ela retribui. Eles param, imóveis, observando-se, e por alguns instantes ela é exatamente o que parece ser: uma mulher grávida, ajoelhada na cozinha com o filho de três anos de idade, que sabe contar até quatro. Ela é ela mesma e a imagem perfeita de si; não há diferença. Vai fazer um bolo de aniversário - apenas um bolo -, mas em sua cabeça, nesse instante, o bolo é tão sofisticado e esplendoroso quanto qualquer fotografia em qualquer revista; é ainda melhor do que as fotografias de bolo nas revistas. Ela se imagina fazendo, com os materias os mais humildes, um bolo com todo o equilíbrio e autoridade de uma urna ou uma casa. O bolo falará de benesses e delícias da mesma forma que uma boa casa fala de segurança e conforto. Isto, ela pensa, é o que os artistas ou arquitetos devem sentir (é uma comparação horrivelmente grandiosa, ela sabe, talvez até um pouco tola, mas e daí?) diante da tela, da pedra, do óleo ou do cimento fresco. Pois então um livro como Mrs. Dalloway já não foi um dia apenas papel em branco e um tinteiro? É apenas um bolo, diz consigo mesma. Mas e daí? Existem bolos e bolos. Nesse momento, segurando uma tigela cheia de farinha peneirada numa casa bem-arrumada, sob o céu da Califórnia, espera sentir-se tão satisfeita e tão repleta de expectativas quanto um escritor pondo sua primeira frase no papel, um arquiteto começando a desenhar seus planos.
'Bacana', ela diz a Richie. 'Você põe a primeira.'
Ela lhe entrega um medidor de metal brilhante. É a primeira vez que lhe confiam uma tarefa como essa. Depois coloca no chão uma segunda tigela, vazia, para ele. Ele segura o medidor com as duas mãos.
'Lá vamos nós', ela diz.'
(...)