segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Uma lição de amor - parte II

"Guiando as mãos de Richie com as suas, ela o ajuda a mergulhar o medidor na farinha. A caneca entra fácil no monte e, através de suas paredes delgadas, ele sente a textura sedosa, a ligeira granulação da farinha peneirada. Uma nuvem minúscula sobe na esteira do medidor. Mãe e filho suspendem-no de novo, cheio de farinha. A farinha cascateia pelos lados prateados da caneca de medir. Laura diz ao menino para segurar firme e ele consegue fazê-lo, com um certo nervosismo e com um gesto rápido, ele dispensa o excesso formado no topo e cria uma superfície branca impecável, no mesmo nível da borda do medidor. Ele continua segurando a caneca com as duas mãos.

'Perfeito. Agora a gente despeja na outra tigela. Acha que consegue fazer isso sozinho?'

'Consigo', ele diz, embora não esteja nem um pouco certo disso. Ele acredita que essa xícara de farinha é única e insubstituível. Uma coisa é ser convocado para atravessar a rua com um repolho na mão, uma outra bem diferente é ser chamado a carregar a cabeça recém-escavada do Apolo de Rilke.

'Então lá vamos nós.'

Com toda a cautela, Richie transporta o medidor até a outra tigela e o mantém ali, paralisado, acima daquela concavidade reluzente (é a vasilha imediatamente menor, de uma série de tigelas iguais, verde-claras, com a mesma faixa de folhas brancas na borda). Ele compreende que deve despejar a farinha na tigela, mas pode ser que ao deixar cair a farinha cause alguma catástrofe maior e desestabilize algum equilíbrio precário. Quer olhar para o rosto da mãe, mas não consegue tirar os olhos do medidor.

'Vira a caneca', ela diz.

Ele vira, com um movimento apressado, temeroso. A farinha hesita por uma fração de segundo e depois cai. Cai solidamente, um monte que repete, de longe, a forma do medidor. Uma nuvem maior se ergue, quase lhe toca o rosto, depois some. Ele olha fixo para o que fez: uma colina branca, levemente granulada, salpicada de sombras insignificantes, destacando-se do branco e brilhante, mais cremoso, interior da tigela.

'Opa', diz a mãe.

Ele olha aterrorizado para ela. Os olhos enchem de lágrimas.

Laura suspira. Por que ele é assim tão delicado, tão sujeito a ataques de um remorso inexplicável? Por que ela tem de ser cuidadosa com ele? Por instantes - apenas instantes - a aparência de Richie se transforma, de maneira sutil. Ele se torna maior, mais brilhante. A cabeça se expande. Um fulgor muito branco parece, momentaneamente, circundá-lo. Por instantes ela quer apenas ir embora - não machucá-lo, jamais faria uma coisa dessas - mas ser livre, inocente, irresponsável.

'Não, não, diz Laura. 'Ótimo. Muito bem. Você fez certinho.'

Ele sorri entre lágrimas, de repente orgulhoso de si, quase insanamente aliviado. Tudo certo, então não foi preciso mais nada além de um punhado de palavras suaves, um pouco de incentivo. Ela suspira. Com delicadeza, toca no cabelo do filho.

'E então? Está pronto para pôr mais uma?'

Ele balança a cabeça com um entusiasmo tão sincero e desarmado que a garganta de Laura contrai num espasmo amoroso. De repente parece frágil assar um bolo, criar um filho. Ela ama o filho, simplesmente, como as mães amam - não se ressente dele, não deseja ir embora. Ama o marido e sente-se feliz de estar casada. Parece possível (não parece impossível) que tenha cruzado uma linha invisível, a linha que sempre a separou daquilo que teria preferido sentir, daquilo que teria preferido ser. Não parece impossível que tenha sofrido uma transformação tênue mais profunda, aqui, nessa cozinha, nesse momento dos mais comuns: ela alcançou a si mesma. Trabalhou tanto tempo, com tal empenho, com tamanha boa-fé, e agora é capaz de viver feliz sendo ela mesma, do mesmo modo como uma criança aprende, num momento determinado, a se equilibrar em cima de uma bicicleta de duas rodas. Parece que ela vai ficar bem. Não perderá a esperança. Não se lamentará pelas possibilidades perdidas, pelos talentos inexplorados (e se não tiver talento nenhum, no fim das contas?). Continuará dedicada ao filho, ao marido, à casa e aos seus afazeres e todos os seus dons. Ela vai querer esse segundo filho."


terça-feira, 19 de julho de 2011

Uma lição de amor - parte I

Quem não tem um livro de cabeceira?!
Tenho alguns. Às vezes, me debato na escolha do felizardo que vai dormir comigo rs
Hoje estou com o 'As horas`do Michael Cunningham.
E tem uma passagem que acho bem legal.
Ei-la:

'Laura começa a peneirar a farinha na vasilha azul. Do lado de fora da janela, existe um breve interlúdio de grama, separando as duas casas vizinhas; a sombra de um passarinho cruza o estuque branquíssimo da garagem ao lado. Por alguns instantes, ela sente uma satisfação profunda com a sobra da ave, as faixas brilhantes de branco e verde. A tigela sobre o balcão onde trabalha é de um azul pálido, meio apagado, com uma tira estreita de folhas brancas na borda. As folhas são idênticas, estilizadas, como se saídas de um desenho animado, tombadas em ângulos inclinados, e parece perfeito e inevitável que uma delas tenha sofrido um pequeno e exato talho triangular do lado. Uma chuva de farinha, fina e branca, cai na tigela.

'Pronto', ela diz a Richie. 'Quer ver?'
'Quero.'
Ela ajoelha para lhe mostrar a farinha peneirada. 'Agora nós vamos ter que medir quatro xícaras. Minha nossa. Você sabe quanto é quatro?'
Ele ergue quatro dedos. 'Ótimo. Muito bem.'

Neste momento, poderia devorá-lo, mas sem avidez, com adoração, infinitamente gentil, como costumava tomar a hóstia na boca, antes de se casar e se converter (a mãe nunca irá perdoá-la, nunca). Ela está cheia de um amor tão forte, tão sem ambiguidade, que parece apetite.

'Você é um menino tão bom, tão inteligente.'

Richie sorri; olha ardorosamente para o rosto dela. Ela retribui. Eles param, imóveis, observando-se, e por alguns instantes ela é exatamente o que parece ser: uma mulher grávida, ajoelhada na cozinha com o filho de três anos de idade, que sabe contar até quatro. Ela é ela mesma e a imagem perfeita de si; não há diferença. Vai fazer um bolo de aniversário - apenas um bolo -, mas em sua cabeça, nesse instante, o bolo é tão sofisticado e esplendoroso quanto qualquer fotografia em qualquer revista; é ainda melhor do que as fotografias de bolo nas revistas. Ela se imagina fazendo, com os materias os mais humildes, um bolo com todo o equilíbrio e autoridade de uma urna ou uma casa. O bolo falará de benesses e delícias da mesma forma que uma boa casa fala de segurança e conforto. Isto, ela pensa, é o que os artistas ou arquitetos devem sentir (é uma comparação horrivelmente grandiosa, ela sabe, talvez até um pouco tola, mas e daí?) diante da tela, da pedra, do óleo ou do cimento fresco. Pois então um livro como Mrs. Dalloway já não foi um dia apenas papel em branco e um tinteiro? É apenas um bolo, diz consigo mesma. Mas e daí? Existem bolos e bolos. Nesse momento, segurando uma tigela cheia de farinha peneirada numa casa bem-arrumada, sob o céu da Califórnia, espera sentir-se tão satisfeita e tão repleta de expectativas quanto um escritor pondo sua primeira frase no papel, um arquiteto começando a desenhar seus planos.

'Bacana', ela diz a Richie. 'Você põe a primeira.'

Ela lhe entrega um medidor de metal brilhante. É a primeira vez que lhe confiam uma tarefa como essa. Depois coloca no chão uma segunda tigela, vazia, para ele. Ele segura o medidor com as duas mãos.


'Lá vamos nós', ela diz.'

(...)


domingo, 17 de julho de 2011

Senhas (!)

Olás,

Venho pensando na idéia de fazer um blog há um tempo ... mas agora decidi 'bater o martelo' e criá-lo!
Não sei o que este espaço se tornará ... que rumos tomará ... as rédeas estarão em nossas mãos!
Bom, prá entrar neste espaço é necessário uma senha. E aí encontrei a 'Senhas` da Adriana Calcanhotto, que sintetiza muito bem o que pretendo começar a tecer com vocês!
Portanto, retire sua senha e se junte a mim. Será um prazer tê-los por aqui!

Avante!

Railton Carvalho

Senhas

Eu não gosto do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus tratos

Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu aguento até os caretas
E suas verdades perfeitas

O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu aguento até os estetas
Eu não julgo competência
Eu não ligo pra etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
E compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades

O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Não, não gosto dos bons modos
Não gosto

Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem